terça-feira, 28 de dezembro de 2010

As Coisas

A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro,
Um livro e em suas páginas a ofendida
Violeta, monumento de uma tarde,
De certo inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas e taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão muito além de nosso olvido:
E nunca saberão que havemos ido.

Jorge Luís Borges


segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

"Arte Degenerada"


Hans Richter-ghosts for breakfast (1927)

O desejo

Não sei o que fazer: o meu coração está
dividido.

A Lua e as Pléiades estão deitadas, o tempo
passa e estou sozinha no meu leito, no
meio da noite.

As crianças trazem bonitos presentes e
ouve-se tocar melodiosa lira.

Mas a velhice já enrugou toda a minha
pele, os meus cabelos negros tornaram-se
brancos, os joelhos já não me aguentam, e
eu que parecia uma corça.

Que posso fazer? É inevitável: a aurora de
braços rosados leva-nos para a cova. Mas eu
ainda amo a volúpia e o amor tem para mim
o brilho e a beleza do sol.

Eu estremeço e a velhice já cobre a minha
pele.
O amor evade-se na perseguição dos jovens.

Agarra na tua lira e canta-nos, Afrodite,
com os seios cobertos de violetas.

Safo, "O desejo"
Trad. Serafim Ferreira, Editorial Teorema, 2003

Valentine Cameron Prinsep, At the first touch of Winter, Summer fades away, 1897

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Espelho do Amor

Ó meu espelho d'aço! Muito amigo
Que me diz as verdades francamente,
me vê doente, quando estou doente,
E sã, se sã me mostro ao seu postigo;

Voz que repete aquilo que eu lhe digo,
E muda, quando mudo de repente,
Olhar que me desenha claramente,
Do meu sentir o mais fiel abrigo:

Mas tu, preferido Amor! O espelho d'alma
Que reflecte a minha pura e calma -
Embaciou-te a luz d'outra paixão:

E hoje, se o meu olhar no teu confundo,
vejo a íris negra d'esse mar profundo
E n'ela os traços meus procuro em vão!

Soneto de 1916, assinado «Azul» in Espólio de Columbano Bordalo Pinheiro


Love's Mirror, Dante Gabriel Rossetti

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Coração pré-fabricado



The Girl With the Prefabricated Heart - participação de Fernand Léger em "Dreams That Money Can Buy" de Hans Richter, 1947

sábado, 11 de dezembro de 2010

A Colmeia

«La mañana sube, poco a poco, trepando como un gusano por los corazones de los hombres y de las mujeres de la ciudad; golpeando, casi con mimo, sobre los mirares recién despiertos, esos mirares que jamás descubren horizontes nuevos, paisajes nuevos, nuevas decoraciones.
La mañana, esa mañana eternamente repetida, juega un poco, sin embargo, a cambiar la faz de la ciudad, ese sepulcro, esa cucaña, esa colmena...»


La Colmena, Camilo José Cela.

Madrid 1942. No Café A Delícia confluem as vidas de pessoas de procedências e costumes muito diversos.


A Colmeia, de Mario Camus, 1982

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Une Charogne


















Johann Caspar Lavater, c. 1775-78

Rappelez-vous l'objet que nous vîmes, mon âme,
Ce beau matin d'été si doux:
Au détour d'un sentier une charogne infâme
Sur un lit semé de cailloux,

Les jambes en l'air, comme une femme lubrique,
Brûlante et suant les poisons,
Ouvrait d'une façon nonchalante et cynique
Son ventre plein d'exhalaisons.

Le soleil rayonnait sur cette pourriture,
Comme afin de la cuire à point,
Et de rendre au centuple à la grande Nature
Tout ce qu'ensemble elle avait joint;

Et le ciel regardait la carcasse superbe
Comme une fleur s'épanouir.
La puanteur était si forte, que sur l'herbe
Vous crûtes vous évanouir.

Les mouches bourdonnaient sur ce ventre putride,
D'où sortaient de noirs bataillons
De larves, qui coulaient comme un épais liquide
Le long de ces vivants haillons.

Tout cela descendait, montait comme une vague
Ou s'élançait en pétillant;
On eût dit que le corps, enflé d'un souffle vague,
Vivait en se multipliant.

Et ce monde rendait une étrange musique,
Comme l'eau courante et le vent,
Ou le grain qu'un vanneur d'un mouvement rythmique
Agite et tourne dans son van.

Les formes s'effaçaient et n'étaient plus qu'un rêve,
Une ébauche lente à venir
Sur la toile oubliée, et que l'artiste achève
Seulement par le souvenir.

Derrière les rochers une chienne inquiète
Nous regardait d'un oeil fâché,
Epiant le moment de reprendre au squelette
Le morceau qu'elle avait lâché.

— Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,
À cette horrible infection,
Etoile de mes yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!

Oui! telle vous serez, ô la reine des grâces,
Apres les derniers sacrements,
Quand vous irez, sous l'herbe et les floraisons grasses,
Moisir parmi les ossements.

Alors, ô ma beauté! dites à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j'ai gardé la forme et l'essence divine
De mes amours décomposés!


Charles Baudelaire - Fleurs du Mal

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O Lux


Montserrat Figueras - Flavit Auster (codex de las Huelgas - séc. XIII) -Lux Feminae

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Morte da Virgem

Morte da Virgem, de Caravaggio, 1606

Originalmente encomendada para a Igreja de Santa Maria della Scala em Travestere, "A Morte da Virgem" acabaria por ser recusada quando se soube que Caravaggio teria usado como modelo da mãe de Cristo uma prostituta morta encontrada a flutuar no Rio Tibre.

Ela é a virgem,
embora tenha conhecido muitos homens
e os seus filhos peregrinem pelo mundo
com lágrimas nos olhos
por não terem mãe.


Já cadáver, encontrei-a no Tibre,
e trouxe-a para aqui para a pintar,
sabendo que os frades não me irão
indultar a ousadia
– hão-de dizer que a tela é indecorosa
e que no meu trabalho nunca largo
o escândalo que me é próprio,
sempre tocado pela lascívia.


Na bacia de cobre está um preparado
com vinagre
para lavar o corpo da defunta,
sendo que aos pés da morta
é Maria Madalena que se vê,
com a cabeça caída
sobre o peito
por ser fundo o desgosto
de ver a amiga morta
– tinham chegado a Roma
há muito tempo
e conheciam-se
de pequenas aventuras nas tavernas,
sendo que às vezes partilhavam a cama
e os clientes,
ou, sendo caso disso, uma manta
no Inverno,
ou algum pão,
escasso,
o mais das vezes.


No centro da pintura estão três apóstolos.
A razão por que um deles está estupefacto
e ergue a mão direita
tem a ver, somente, com o drama
de a morte ser injusta,
usurpe alguém divino,
ou um miserável que não tenha
onde cair morto.


Mateus,
de todos os apóstolos o mais sábio,
porque estudou nos livros e na vida,
sabe que não há bálsamo eficaz
para quem parte,
por muito que tenha já sofrido;
por isso, o represento assim,
inconformado,
com uma mão aberta, e outra fechada:


a vida é tudo o que nos resta
estando vivos – o que vem a seguir
nunca se sabe que dimensões comporta,
mesmo que haja luz no outro lado
e a promessa de bondade seja cumprida.


Ao lado de Mateus, pintei Tiago,
que presume que a mulher não faleceu,
mas só se encontra adormecida
– se deu à luz, um dia,
e os seus filhos estão aí a comprová-lo,
ainda que dispersos pelo mundo,
é porque o transe da morte ultrapassou,
e dorme, apenas, para que conheça a eternidade
e influencie o céu
com a sua doçura perene de mulher.


O outro é Lucas,
que, a olhar em frente,
está a tentar compreender o que é um corpo,
essa engrenagem obscura,
que, sem álibis,
nos reflecte os métodos de Deus
– que dá, a cada um, um modo de sorrir e de chorar,
um modo de sofrer e de amar,
um modo de nascer e de morrer.


Atrás dos três apóstolos,
está disposto o mundo
– é gente que encontrei pelos mercados
e, em silêncio, dá testemunho
de que há na terra um tempo
em que se deve duvidar do que é certo,
sendo que certa há-de estar sempre a morte,
mas, também, o trabalho que aguarda
pelas nossas mãos,
na oficina,
nos campos
ou em casa.


Um é curtidor de peles,
outro negoceia cereais e vinhos,
outro faz cestos, e vende-os pelas praças,
outro é talhante,
um outro é ferrador e é barbeiro,
outro é astrónomo,
outro copista,
outro é soldado,
e outro pede esmola nas vielas,
a gritar a quem passa por piedade.


O mundo, pois.
Onde esteja a morte
é bom que um pintor figure o mundo,
para que no jogo de sombras fique incluso
esse jogo mais duro do confronto
com a realidade,
onde o próprio veludo tem cores cruas.


É isto que os frades me não perdoam
– o meu desassombramento perante o mundo,
a concisão patente no que faço,
chamando-lhe indecência
e insinuando que vesti de vermelho esta mulher
por gozo pessoal e por volúpia.


Não é verdade.
Antes de mais, porque a encontrei assim.
Depois, porque pensei que numa mulher não há pecado,
seja ela quem for e de onde venha.
Por último, porque tratando-se da virgem,
só mesmo o sangue a pode vestir,
o sangue espesso e forte,
de modo que quem olhar esta pintura
saiba o que vê, imediatamente:


uma mãe
que o sofrimento jamais abandonou,
em tudo o que viveu
– os perigos que há ao dar à luz,
a fuga para o Egipto,
a ameaça concreta no Sinédrio,
a árdua resistência necessária
para perscrutar em qualquer cruz
a iniquidade que o destino alcança.


Inchado,
maculado,
desfigurado
tem o seu rosto esta mulher morta,
adormecida.


E eu sou Caravaggio,
que luto, denodadamente, com a arte
para que a tragédia,
sagrada ou profana,
se represente igual à sua gravidade,
cantem, ou não, os anjos as hossanas,
goste-se, ou não se goste, do que faço.


A vida é turbulência
– e é assim que chega às minhas telas,

e é assim que o que pinto,
entre claros e escuros,
me proclama.

Amadeu Baptista, "Poemas de Caravaggio"

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Othello


Othello, de Oliver Parker, 1995

domingo, 5 de dezembro de 2010

A Folia


Arcangelo Corelli: Sonata No.12 em d Menor, La Follia, Parte 1
Eduard Melkus- Violin
Capella Academica Wien 1973

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A Nau dos Insensatos

Hieronymus Bosch, A Nave dos Loucos,1503-1504

A nau dos insensatos é uma antiga alegoria muito usada na cultura ocidental. O mundo humano é visto como uma nau cheia de passageiros loucos, que nem sabem nem se importam para onde vão.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Soneto

A uma Senhora que principiava a fazer versos, e me pediu
os meus fracos conselhos sobre os primeiros que fez,
os quais foram eróticos.

Sribendi recte sapere est et principium et fons.
Horácio, Arte Poética

Ninfa gentil, não penses que em Cítera
De Aganipe há quem prove a pura enchente;
Colhe Amor algum mirto florecente,
Porém não tece Amor a c'roa d'hera.

O menino travesso bem quisera
Turbar da fonte a veia transparente,
E publica enre falsa e néscia gente
Que nos braços d'Erato adormecera.

Mas quem buscar da mágica Poesia
O harmónico som, que a alma namora,
A leis sábias submeta a fantasia.

Não creia Amor, que mente a cada hora;
Leia os vates sublimes d'algum dia,
Estes os templos onde Apolo mora.

Marquesa de Alorna

Antoine Watteau, O Embarque para Citera, a Ilha do Amor (detalhe)

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Canção de Alcipe


Carlos Paredes: Canção De Alcipe

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A F., Favorecendo com a boca e desprezando com os olhos

Quando o sol nasce e a sombra principia,
A doce abelha, a borboleta airosa
Procura luz ardente e fresca rosa
Que faz a terra céo e a noite, dia.

Mas quando à flor se entrega, à luz se fia,
Uma fica infeliz outra ditosa;
Pois vive a abelha e morre a mariposa
Na favorável rosa e chama ímpia.

Fílis, abelha sou, sou borboleta,
Que com afecto igual, com igual sorte,
Busco em vós melhor luz, flor mais selecta;

Mas quando a flor é branda, a chama é forte,
Néctar acho na flor, na luz cometa,
A boca me dá vida, os olhos morte.

Jerónimo Baía

Georges de La Tour, Maria Madalena, c. 1625-1650

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Vagheggiar


Nathalie Dessay- area de alcina "Tornami a vagheggiar" - Handel

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O Desespero da Velha

A velha, pequenina e encarquilhada, ficou toda contente ao ver a linda criança a quem todos faziam festas, a quem toda a gente queria agradar: aquele serzinho, tão frágil como ela, a pequenina velha, e, também como ela, sem dentes e sem cabelo.

E ela então aproximou-se, procurando desfazer-se em risadinhas e trejeitos agradáveis.

Mas a criança, cheia de susto, estrebuchava sob as carícias da boa senhora decrépita, e enchia a casa toda com os seus guinchos.

Então a boa velhinha retraiu-se para a sua eterna solidão, e ficou a chorar num canto, dizendo consigo: - "Ah! para nós desgraçadas fêmeas idosas, já passou o tempo de agradar, mesmo aos inocentes; metemos medo aos próprios pequeninos a quem temos desejo de amar!"

in O Spleen de Paris, de Charles Baudelaire




















Mrs T. Charlton Henry (1965), de Diane Arbus

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Máscaras



Eyes Wide Shut, realizado por Stanley Kubrick, é baseado no conto Traumnovelle (História de um Sonho), de Arthur Schnitzler. Escrito em 1926, descreve os momentos de alucinação consciente de um jovem médico, na Viena de Áustria do início do século XX. Entre cafés, casas de prostituição e ruas obscuras, apercebe-se do seu Ego e dos seus instintos.

Migrations


Migrations, de Jocelyn Pook - banda sonora de Eyes Wide Shut (1999), de Stanley Kubrick

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Mundo

No mundo só fantasia existe: está comigo decidir se ela é o tudo ou o nada, já que me não pode socorrer o exterior, tão interior como eu ou eu tão exterior como ele, os dois afinal num mundo em que também é a fantasia a distinção entre um e outro.
Agostinho da Silva, Pensamento em Farmácia de Província


Dmitri Shostakovich - Valsa No. 2

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Vaidade

Tríptico Vaidade e Salvação (c. 1490) de Hans Memling.





domingo, 21 de novembro de 2010

O colchão dentro do toucado



















Chaves na mão, melena desgrenhada,
Batendo o pé na casa, a Mãe ordena
Que o furtado colchão, fofo e de pena,
A filha o ponha ali ou a criada.

A filha, moça esbelta e aperaltada
Lhe diz co´a doce voz que o ar serena:
“Sumiu-se-lhe um colchão, é forte pena!
Olhe não fique a casa arruinada …”

“Tu respondes assim? Tu zombas disto?
Tu cuidas que, por ter pai embarcado,
Já a mãe não tem mãos?” E dizendo isto,
Arremete-lhe á cara e ao penteado.
Eis senão quando (caso nunca visto)
Sai-lhe o colchão de dentro do toucado.

Nicolau Tolentino

sábado, 20 de novembro de 2010

Opiário (Parte I)


Opiário de Álvaro de Campos in Humores I, dito por Mário Viegas

Opiário (Parte II)


Opiário, de Álvaro de Campos, dito por Mário Viegas

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

À fragilidade da vida

Esse baixel nas praias derrotado
Foi nas ondas Narciso presumido;
Esse farol nos céus escurecido
Foi do monte libré, gala do prado.

Esse nácar em cinzas desatado
Foi vistoso pavão de Abril florido;
Esse Estio em Vesúvios encendido
Foi Zéfiro suave, em doce agrado.

Se a nau, o Sol, a rosa, a Primavera
Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel
Sentem nos auges de um alento vago,

Olha, cego mortal, e considera
Que és rosa, Primavera, Sol, baixel,
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago.
Francisco de Vasconcelos (1665-1723), FÉNIX RENASCIDA III















William Dyce, Omnia Vanitas

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O Fantoche

O virtuoso não serve a música. Serve-se dela.
- Jean Cocteau


Carlos Paredes: O Fantoche

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Em busca da Beleza

Soam vãos, dolorido epicurista,
Os versos teus, que a minha dor despreza;
Já tive a alma sem descrença presa
Desse teu sonho, que perturba a vista.

Da Perfeição segui em vã conquista,
Mas vi depressa, já sem a alma acesa,
Que a própria idéia em nós dessa beleza
Um infinito de nós mesmos dista.

Nem à nossa alma definir podemos
A Perfeição em cuja estrada a vida,
Achando-a intérmina, a chorar perdemos.

O mar tem fim, o céu talvez o tenha,
Mas não a ânsia da Coisa indefinida
Que o ser indefinida faz tamanha.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"



"Morte em Veneza, de Luchino Visconti, 1971

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Poema em linha recta


poema em linha recta- Álvaro de Campos

sábado, 13 de novembro de 2010

Das Delícias Terrenas


O tríptico O Jardim das Delícias Terrenas (c. 1503 - 1510), de Hieronymus Bosch,  descreve a história do Mundo a partir da criação, apresentando o Paraíso e o Inferno nos painéis laterais. Ao centro surge a celebração dos prazeres da carne.


Entre o bem e o mal está a vida e o pecado. No jardim do painel central, as representações do gozo e do prazer reflectem um carácter efémero da vida.


Nesta sátira dos pecados e desvarios da humanidade, a par de uma censura implacável, encontramos a  fantasia poética, divertida e irónica.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Lachrimae Antiquae

John Dowland (1563-1626) foi um músico e alaúdista inglês, do período renascentista, contemporâneo de William Shakespeare.


Jordi Savall - Hespérion XX - "Lachrimae Antiquae" de John Dowland

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Beleza Efémera e Inatingível

À une passante

La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair... puis la nuit! — Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?

Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!

Charles Baudelaire - Tableaux Parisiens - Fleurs du Mal (1861)

Gustav Klimt, Retrato de Adele Bloch Bauer

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

La Dolce Vita

O mistério da vida e a beleza que fluem das águas da Fonte Trevi. Sylvia é como a água, chamando para a vida.
"Quem és tu?" pergunta o homem - o que é a vida? O mistério é revelado no silêncio... só assim se apreende a beleza do momento.


La Dolce Vita, de Federico Fellini, 1960

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Flow My Tears


Andreas Scholl - "Flow my tears" (de John Dowland)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O Cavaleiro e a Morte


O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, 1956

A Procissão dos Condenados

O sentimento trágico da vida e a sua amarga pena. Os metafísicos efabulados - Purgatório, Inferno e Paraíso...
O medo do nada!


O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, 1956

domingo, 7 de novembro de 2010

A Dança da Morte

As Danças Macabras eram um tema popular na arte da Idade Média e dos primórdios do Renascimento. Nesses tempos idos, devastados por pestes e insuficiências médicas e sanitárias, subnutrição, promiscuidade e falta de higiene, tudo favorecia o "trabalho" eficaz da Cefeira...

Os quatro Cavaleiros do Apocalipse – a Guerra, a Fome, a Peste... e a Morte.

A "grande mofina" que vai ceifando vidas metodicamente, dizimando multidões de "almas" de todas as classes e idades, sem excepções nem contemplações, aceitando no seu seio maldito a mais desvairada diversidade da espécie humana... 


Música de Tomaso de Celano - Dies Irae
A Dança da Morte (1538), de Hans Holbein (c.1497-1543)

sábado, 6 de novembro de 2010

Nascido da luz e das trevas


Il Trionfo di Bacco

Dionísio, cujo nome significa o que “nasceu duas vezes”, é filho de Zeus e de uma princesa mortal de Tebas, Sémele.

A esposa imortal de Zeus, Hera, enfurecida com a infidelidade do marido, disfarçou-se de ama-seca e foi até Sémele, ainda grávida, para persuadi-la a pedir que seu marido se mostrasse em todo seu esplendor e glória divinos.

Zeus que prometera a Sémele jamais lhe negar coisa alguma, assim o fez para satisfazê-la. Sémele não suportou a visão do deus circundado de clarões e morreu fulminada. Zeus apressou-se então a retirar a criança que ele gerava e ordenou a Hermes, o mensageiro dos deuses, que costurasse o feto em sua própria coxa. Assim, ao terminar a gestação, Dionísio nasceu perfeito.

Contudo, Hera não satisfeita, continuou a perseguir a estranha criança de chifres e ordenou aos Titãs que matassem o menino, fazendo-o em pedaços. Novamente Zeus interferiu e conseguiu resgatar o coração da criança que ainda batia. Colocou-o para cozinhar, junto com a semente de romã, transformando tudo numa poção mágica, a qual deu de beber a Perséfone, que acabara de ser raptada por Hades, deus das trevas e da escuridão, e que se tornara sua esposa. Perséfone engravidou e novamente deu à luz Dionísio. Por essa razão Dionísio é o que nasceu duas vezes, da luz e das trevas.

O seu pai celestial ordenou-lhe que vivesse na terra junto aos homens para compartilhar com eles as alegrias e sofrimentos dos mortais. Dionísio foi atingido pela loucura de Hera, indo perambular pelo mundo, ao lado de sátiros selvagens, dos loucos e dos animais. Deu à humanidade o vinho e suas benções, concedendo ao êxtase da embriaguez a redenção espiritual para todos os que decidiam renunciar às riquezas e ao poder material. Por fim, Zeus permitiu-lhe retornar ao Olimpo, onde tomou o seu lugar à direita do deus dos deuses.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Ópio


Adam Aston - Opium, 1933

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Poemas de Cabaret


XIV Poemas de Cabaret, 1933 - José Gomes Ferreira

domingo, 31 de outubro de 2010

O Fim Derradeiro


Harmen Stennwyck, As Vaidades da Vida Humana, c.1645

O significado directo e último das vanitas, explícitas que são na sua referencialidade óbvia, é sobretudo o de uma advertência séria, severa, um verdadeiro aviso, uma repreensão lapidar sobre a ignorante leviandade das vaidades mundanas, a inconsciência alheada dos excessos e finitudes várias do Homem - os seus vícios e horrores, as suas paixões desonestas, desvairadas de cegas, funestas, os seus apetites venais insaciáveis, as suas perigosas irracionalidades, as suas pulsões inconfessáveis; e, em geral, uma distância circunspecta por tudo o que se aprecia, sem freio e pudor, com desbragado hedonismo, neste mundo de carnalidades e materialismos primários, doentiamente consumista e fetichista, inundado pelos prazeres mais desatinados. Que têm um fim! - é esse o aviso.

A eficácia da advertência e aviso é conseguida pelo efeito de contraste violento estabelecido entre o crânio humano, a caveira, às vezes também as tíbias, mesmo o inteiro esqueleto, sinais escatológicos manifestos do ameaçador fim dos fins, colocados em evidência de primeiro plano, em recorte contrastante com os objectos que os rodeiam, de ostentação e aparato, de erudição e estudo, de pompa e fausto, dispostos em minuciosa e verista composição formal, de apurado sentido lumínico-cénico e forte carga dramática. (...)

Mórbidos, fúnebres, macabros, tétricos, são bodegones intemporais, porque anunciam a verdade mais radical de todos os tempos, de sempre - a Morte - o fim súbito e derradeiro do epicurismo instante de todos os tempos, que aproveita com sofreguidão a precaridade escassa dos momentos agradáveis e felizes da existência, as raras oportunidades de gozo, e deleite, dos chamados "pecados veniais" (os cabalísticos sete vícios). Para os "pecadores" a honesta volúpia dos prazeres (infelizmente) demasiado efémeros.


Luís Calheiros, Entradas para um Dicionário de Estética

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

3/3 La Βοulangère de Monceau


3/3 La Βοulangère de Monceau, de Eric Rohmer, 1963

2/3 La Βοulangère de Monceau


2/3 La Βοulangère de Monceau, de Eric Rohmer, 1963

1/3 La Boulangère de Monceau


1/3 La Βοulangère de Μοnceau, de Eric Rohmer,1963

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Magnificat


Arvo Part - Magnificat

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Infalível Prostituta


XIV Poemas de Cabaret, 1933 - Infalível Prostituta - José Gomes Ferreira

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Sebastiane

A mais polémica representação cinematográfica de São Sebastião deve-se a Derek Jarman (1942-1994). Com música de Brian Eno e Andrew Thomas Wilson, o filme causa estranheza com os seus diálogos em latim.
S. Sebastião, antigo capitão da guarda pretoriana de Diocleciano, passou à iconografia como um mártir, exaltando-se na sua nudez escultural o sacrifício da juventude e da beleza. Contudo, em certas representações, surge uma atitude equívoca do corpo crivado de setas que sugere o que hoje chamamos de masoquismo.
Derek Jarman, com o seu primeiro filme, "Sebastiane", abstraiu-se quase completamente do contexto histórico e da motivação religiosa do personagem para se entregar, com alguma complacência, à hagiografia "desviada" do santo.


Sebastiane, de Derek Jarman, 1976

domingo, 24 de outubro de 2010

La Musica


Taccata, Ritornelo e Prólogo de Orfeu - Monteverdi
voz de Trudeliese Schmidt

sábado, 23 de outubro de 2010

Satyricon


Un giro nella  Suburra - Satyricon, de Federico Fellini, 1969

Esta é a livre adaptação de Fellini da peça de Petronius, que faz uma crónica da vida na Roma Antiga. Encolpio (Martin Potter) e seu amigo Ascilto (Hiram Keller) disputam o afecto do jovem Gitone (Max Born). Quando Encolpio é rejeitado, inicia uma jornada na qual encontra todos os tipos de pessoas e de acontecimentos. Apesar de se basear na sociedade da Roma Antiga, Satyricon reflecte também o caos que a sociedade da década de 60 (séc. XX) vivia.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Os ais


Mário Viegas - "Os ais"

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Je cherche

A inconstância da mulher é uma das perfeições deste planeta. - Camilo Castelo Branco


La Collectionneuse, de Eric Rohmer - Haydée Politoff "Je Cherche"

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Sedução

Epilogue
It was in the reign of George III
that the aforesaid personages lived and quarrelled,
good or bad, handsome or ugly, rich or poor
they are all equal now



"Barry Lyndon", de Stanley Kubrick, de 1975 - baseado no romance Barry Lyndon de William Makepeace Thackeray.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Ódio à Civilização Burguesa


XIV Poemas de Cabaret, 1933 - Ódio à Civilização Burguesa - de José Gomes Ferreira

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Vanitas

Auto-retrato com símbolos de Vanitas, de David Bailly, 1651

As VANITAS (vaidades) são as expressões artísticas que traduzem, de maneira simbólica e num registo eloquente, sibilino, a nossa relação conflituosa com a morte. São formas artísticas históricas, datadas no tempo (e no entanto de sentido intemporal), que nos confrontam com a maior doença colectiva da humanidade, que é a angústia que resulta da consciência aguda da mortalidade.
São uma espécie particular, muito específica e típica, emblemática, de natureza-morta. Género singular de natureza-morta intensamente expressiva e de complexa significação, de óbvia alusão filosófica (acentuada muitas vezes pelas legendas eruditas) e de comentário a um tempo sarcástico e cínico, macabro, pretendendo expressar edificante sabedoria moral e imperativo aviso para reflexão radical, em que é feita a comparação por contraste total, entre a precaridade efémera dos prazeres mundanos, o vazio das ostentações vaidosas do Homem, o engano pelo apego excessivo pelas riquezas materiais de que se rodeia; e a realidade ameaçadora do triunfo final da morte tudo nivelando num nada fáctico, sendo representada a "mofina" em evidência perturbadora, pelo seu emblema mais imediato e certeiro - a caveira - o crânio humano.
Modelo paradigmático muito recorrente e prolixo, particular forma de encenação retórico-alegórica, foi tema "na moda" pelos fins do século XVI e por todo o século XVII, e mesmo ainda glosado tardiamente no início do século XVIII, por toda a Europa.
Luís Calheiros, Entradas para um Dicionário de Estética


António de Pereda, O Sonho do Cavaleiro, 1638

domingo, 17 de outubro de 2010

Caravaggio


Caravaggio, de Derek Jarman, 1986

sábado, 16 de outubro de 2010

O auto-admirador


Eco e Narciso, de John William Waterhouse

Na mitologia clássica, Narciso era famoso pela sua beleza e orgulho. Existem várias versões do seu mito.

A beleza de Narciso era tão incomparável que ele se julgava semelhante a um deus, comparável a Dionísio e Apolo. Como resultado disso, Narciso rejeitou o amor de Eco, uma bela e graciosa ninfa, e esta, desesperada, definhou, deixando apenas um sussurro débil e melancólico. Para dar uma lição ao rapaz frívolo, a deusa Némesis condenou Narciso a apaixonar-se pelo seu próprio reflexo na lagoa de Eco. Encantado pela sua própria beleza, Narciso deitou-se no banco do rio e definhou, olhando-se na água. As ninfas construíram-lhe uma pira, mas quando foram buscar o corpo, apenas encontraram uma flor no seu lugar: o narciso.

Pausânias cita uma variante menos conhecida da história, na qual Narciso tinha uma irmã gémea. Ambos se vestiam da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caçavam juntos. Narciso apaixonou-se por ela. Quando ela morreu, Narciso consumiu-se de desgosto por ela, e fingiu que o reflexo que via na água era a sua irmã. Onde o seu corpo se encontrava, apenas restou uma flor: o narciso.

Numa versão mais arcaica do que a contada por Ovídio nas suas Metamorfoses, o orgulhoso e insensível Narciso é punido por ter desprezado todos os seus pretendentes masculinos. Nesta história, Amantis, um jovem, amava Narciso mas era desprezado. Para se livrar de Amantis, Narciso deu-lhe uma espada de presente. Amantis usou essa espada para se matar à porta de Narciso e rogou a Némesis que Narciso conhecesse um dia a dor do amor não correspondido. Esta maldição foi cumprida quando Narciso ficou encantado pelo seu reflexo na lagoa e tentou seduzir o belo rapaz, não se apercebendo de que aquele que ele olhava era ele próprio. Completando a simetria do conto, Narciso toma a sua espada e mata-se por desgosto.

Outras versões da história dizem que Narciso, após desdenhar os seus pretendentes masculinos, foi amaldiçoado pelos deuses para amar o primeiro homem em que pousasse os olhos. Enquanto caminhava pelos jardins de Eco, descobriu a lagoa da ninfa e viu o seu reflexo na água. Apaixonando-se profundamente por si próprio, inclinou-se cada vez mais para o seu reflexo na água, e acaboupor cair na lagoa e afogar-se.

Narcisismo

Narciso, de Caravaggio
O narcisismo tem o seu nome derivado de Narciso, e ambos derivam da palavra grega narke, "entorpecido" de onde também vem a palavra narcótico. Para os gregos, Narciso simbolizava a vaidade e a insensibilidade, pois era emocionalmente entorpecido às solicitações daqueles que se apaixonaram pela sua beleza.
O mito de Narciso representa (senão para os gregos ao menos para nós) o drama da individualidade mostrando a profundidade de um indivíduo que toma consciência de si mesmo, em si mesmo e perante a si mesmo.
No romance de Stendhal O Vermelho e o Negro diz o príncipe Korasoff a Julien Sorel, o protagonista, sobre a sua amada Mathilde:

Ela olha para ela em vez de olhar para ti, e por isso não te conhece.
Durante as duas ou três pequenas explosões de paixão que ela se permitiu a teu favor, ela, por um grande esforço de imaginação, viu em ti o herói dos seus sonhos, e não tu mesmo como realmente és.
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