terça-feira, 28 de dezembro de 2010

As Coisas

A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro,
Um livro e em suas páginas a ofendida
Violeta, monumento de uma tarde,
De certo inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas e taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão muito além de nosso olvido:
E nunca saberão que havemos ido.

Jorge Luís Borges


segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

"Arte Degenerada"


Hans Richter-ghosts for breakfast (1927)

O desejo

Não sei o que fazer: o meu coração está
dividido.

A Lua e as Pléiades estão deitadas, o tempo
passa e estou sozinha no meu leito, no
meio da noite.

As crianças trazem bonitos presentes e
ouve-se tocar melodiosa lira.

Mas a velhice já enrugou toda a minha
pele, os meus cabelos negros tornaram-se
brancos, os joelhos já não me aguentam, e
eu que parecia uma corça.

Que posso fazer? É inevitável: a aurora de
braços rosados leva-nos para a cova. Mas eu
ainda amo a volúpia e o amor tem para mim
o brilho e a beleza do sol.

Eu estremeço e a velhice já cobre a minha
pele.
O amor evade-se na perseguição dos jovens.

Agarra na tua lira e canta-nos, Afrodite,
com os seios cobertos de violetas.

Safo, "O desejo"
Trad. Serafim Ferreira, Editorial Teorema, 2003

Valentine Cameron Prinsep, At the first touch of Winter, Summer fades away, 1897

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Espelho do Amor

Ó meu espelho d'aço! Muito amigo
Que me diz as verdades francamente,
me vê doente, quando estou doente,
E sã, se sã me mostro ao seu postigo;

Voz que repete aquilo que eu lhe digo,
E muda, quando mudo de repente,
Olhar que me desenha claramente,
Do meu sentir o mais fiel abrigo:

Mas tu, preferido Amor! O espelho d'alma
Que reflecte a minha pura e calma -
Embaciou-te a luz d'outra paixão:

E hoje, se o meu olhar no teu confundo,
vejo a íris negra d'esse mar profundo
E n'ela os traços meus procuro em vão!

Soneto de 1916, assinado «Azul» in Espólio de Columbano Bordalo Pinheiro


Love's Mirror, Dante Gabriel Rossetti

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Coração pré-fabricado



The Girl With the Prefabricated Heart - participação de Fernand Léger em "Dreams That Money Can Buy" de Hans Richter, 1947

sábado, 11 de dezembro de 2010

A Colmeia

«La mañana sube, poco a poco, trepando como un gusano por los corazones de los hombres y de las mujeres de la ciudad; golpeando, casi con mimo, sobre los mirares recién despiertos, esos mirares que jamás descubren horizontes nuevos, paisajes nuevos, nuevas decoraciones.
La mañana, esa mañana eternamente repetida, juega un poco, sin embargo, a cambiar la faz de la ciudad, ese sepulcro, esa cucaña, esa colmena...»


La Colmena, Camilo José Cela.

Madrid 1942. No Café A Delícia confluem as vidas de pessoas de procedências e costumes muito diversos.


A Colmeia, de Mario Camus, 1982

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Une Charogne


















Johann Caspar Lavater, c. 1775-78

Rappelez-vous l'objet que nous vîmes, mon âme,
Ce beau matin d'été si doux:
Au détour d'un sentier une charogne infâme
Sur un lit semé de cailloux,

Les jambes en l'air, comme une femme lubrique,
Brûlante et suant les poisons,
Ouvrait d'une façon nonchalante et cynique
Son ventre plein d'exhalaisons.

Le soleil rayonnait sur cette pourriture,
Comme afin de la cuire à point,
Et de rendre au centuple à la grande Nature
Tout ce qu'ensemble elle avait joint;

Et le ciel regardait la carcasse superbe
Comme une fleur s'épanouir.
La puanteur était si forte, que sur l'herbe
Vous crûtes vous évanouir.

Les mouches bourdonnaient sur ce ventre putride,
D'où sortaient de noirs bataillons
De larves, qui coulaient comme un épais liquide
Le long de ces vivants haillons.

Tout cela descendait, montait comme une vague
Ou s'élançait en pétillant;
On eût dit que le corps, enflé d'un souffle vague,
Vivait en se multipliant.

Et ce monde rendait une étrange musique,
Comme l'eau courante et le vent,
Ou le grain qu'un vanneur d'un mouvement rythmique
Agite et tourne dans son van.

Les formes s'effaçaient et n'étaient plus qu'un rêve,
Une ébauche lente à venir
Sur la toile oubliée, et que l'artiste achève
Seulement par le souvenir.

Derrière les rochers une chienne inquiète
Nous regardait d'un oeil fâché,
Epiant le moment de reprendre au squelette
Le morceau qu'elle avait lâché.

— Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,
À cette horrible infection,
Etoile de mes yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!

Oui! telle vous serez, ô la reine des grâces,
Apres les derniers sacrements,
Quand vous irez, sous l'herbe et les floraisons grasses,
Moisir parmi les ossements.

Alors, ô ma beauté! dites à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j'ai gardé la forme et l'essence divine
De mes amours décomposés!


Charles Baudelaire - Fleurs du Mal

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O Lux


Montserrat Figueras - Flavit Auster (codex de las Huelgas - séc. XIII) -Lux Feminae

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Morte da Virgem

Morte da Virgem, de Caravaggio, 1606

Originalmente encomendada para a Igreja de Santa Maria della Scala em Travestere, "A Morte da Virgem" acabaria por ser recusada quando se soube que Caravaggio teria usado como modelo da mãe de Cristo uma prostituta morta encontrada a flutuar no Rio Tibre.

Ela é a virgem,
embora tenha conhecido muitos homens
e os seus filhos peregrinem pelo mundo
com lágrimas nos olhos
por não terem mãe.


Já cadáver, encontrei-a no Tibre,
e trouxe-a para aqui para a pintar,
sabendo que os frades não me irão
indultar a ousadia
– hão-de dizer que a tela é indecorosa
e que no meu trabalho nunca largo
o escândalo que me é próprio,
sempre tocado pela lascívia.


Na bacia de cobre está um preparado
com vinagre
para lavar o corpo da defunta,
sendo que aos pés da morta
é Maria Madalena que se vê,
com a cabeça caída
sobre o peito
por ser fundo o desgosto
de ver a amiga morta
– tinham chegado a Roma
há muito tempo
e conheciam-se
de pequenas aventuras nas tavernas,
sendo que às vezes partilhavam a cama
e os clientes,
ou, sendo caso disso, uma manta
no Inverno,
ou algum pão,
escasso,
o mais das vezes.


No centro da pintura estão três apóstolos.
A razão por que um deles está estupefacto
e ergue a mão direita
tem a ver, somente, com o drama
de a morte ser injusta,
usurpe alguém divino,
ou um miserável que não tenha
onde cair morto.


Mateus,
de todos os apóstolos o mais sábio,
porque estudou nos livros e na vida,
sabe que não há bálsamo eficaz
para quem parte,
por muito que tenha já sofrido;
por isso, o represento assim,
inconformado,
com uma mão aberta, e outra fechada:


a vida é tudo o que nos resta
estando vivos – o que vem a seguir
nunca se sabe que dimensões comporta,
mesmo que haja luz no outro lado
e a promessa de bondade seja cumprida.


Ao lado de Mateus, pintei Tiago,
que presume que a mulher não faleceu,
mas só se encontra adormecida
– se deu à luz, um dia,
e os seus filhos estão aí a comprová-lo,
ainda que dispersos pelo mundo,
é porque o transe da morte ultrapassou,
e dorme, apenas, para que conheça a eternidade
e influencie o céu
com a sua doçura perene de mulher.


O outro é Lucas,
que, a olhar em frente,
está a tentar compreender o que é um corpo,
essa engrenagem obscura,
que, sem álibis,
nos reflecte os métodos de Deus
– que dá, a cada um, um modo de sorrir e de chorar,
um modo de sofrer e de amar,
um modo de nascer e de morrer.


Atrás dos três apóstolos,
está disposto o mundo
– é gente que encontrei pelos mercados
e, em silêncio, dá testemunho
de que há na terra um tempo
em que se deve duvidar do que é certo,
sendo que certa há-de estar sempre a morte,
mas, também, o trabalho que aguarda
pelas nossas mãos,
na oficina,
nos campos
ou em casa.


Um é curtidor de peles,
outro negoceia cereais e vinhos,
outro faz cestos, e vende-os pelas praças,
outro é talhante,
um outro é ferrador e é barbeiro,
outro é astrónomo,
outro copista,
outro é soldado,
e outro pede esmola nas vielas,
a gritar a quem passa por piedade.


O mundo, pois.
Onde esteja a morte
é bom que um pintor figure o mundo,
para que no jogo de sombras fique incluso
esse jogo mais duro do confronto
com a realidade,
onde o próprio veludo tem cores cruas.


É isto que os frades me não perdoam
– o meu desassombramento perante o mundo,
a concisão patente no que faço,
chamando-lhe indecência
e insinuando que vesti de vermelho esta mulher
por gozo pessoal e por volúpia.


Não é verdade.
Antes de mais, porque a encontrei assim.
Depois, porque pensei que numa mulher não há pecado,
seja ela quem for e de onde venha.
Por último, porque tratando-se da virgem,
só mesmo o sangue a pode vestir,
o sangue espesso e forte,
de modo que quem olhar esta pintura
saiba o que vê, imediatamente:


uma mãe
que o sofrimento jamais abandonou,
em tudo o que viveu
– os perigos que há ao dar à luz,
a fuga para o Egipto,
a ameaça concreta no Sinédrio,
a árdua resistência necessária
para perscrutar em qualquer cruz
a iniquidade que o destino alcança.


Inchado,
maculado,
desfigurado
tem o seu rosto esta mulher morta,
adormecida.


E eu sou Caravaggio,
que luto, denodadamente, com a arte
para que a tragédia,
sagrada ou profana,
se represente igual à sua gravidade,
cantem, ou não, os anjos as hossanas,
goste-se, ou não se goste, do que faço.


A vida é turbulência
– e é assim que chega às minhas telas,

e é assim que o que pinto,
entre claros e escuros,
me proclama.

Amadeu Baptista, "Poemas de Caravaggio"

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Othello


Othello, de Oliver Parker, 1995

domingo, 5 de dezembro de 2010

A Folia


Arcangelo Corelli: Sonata No.12 em d Menor, La Follia, Parte 1
Eduard Melkus- Violin
Capella Academica Wien 1973

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A Nau dos Insensatos

Hieronymus Bosch, A Nave dos Loucos,1503-1504

A nau dos insensatos é uma antiga alegoria muito usada na cultura ocidental. O mundo humano é visto como uma nau cheia de passageiros loucos, que nem sabem nem se importam para onde vão.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Soneto

A uma Senhora que principiava a fazer versos, e me pediu
os meus fracos conselhos sobre os primeiros que fez,
os quais foram eróticos.

Sribendi recte sapere est et principium et fons.
Horácio, Arte Poética

Ninfa gentil, não penses que em Cítera
De Aganipe há quem prove a pura enchente;
Colhe Amor algum mirto florecente,
Porém não tece Amor a c'roa d'hera.

O menino travesso bem quisera
Turbar da fonte a veia transparente,
E publica enre falsa e néscia gente
Que nos braços d'Erato adormecera.

Mas quem buscar da mágica Poesia
O harmónico som, que a alma namora,
A leis sábias submeta a fantasia.

Não creia Amor, que mente a cada hora;
Leia os vates sublimes d'algum dia,
Estes os templos onde Apolo mora.

Marquesa de Alorna

Antoine Watteau, O Embarque para Citera, a Ilha do Amor (detalhe)
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...