domingo, 7 de outubro de 2012

O que é a morte?

Charles Nevols


O que é o caminho?
anúncio de partida
escrito em folhas
que o pó desenhou.

O que é o pó?
futuro do corpo.

O que é um espelho?
uma segunda face
um terceiro olho.

O que é uma rosa?
cabeça a decapitar.

O que é a morte?
carro que leva
do útero da mulher
ao útero da terra.

O que é o anoitecer?
discurso de despedida.

O que é a lágrima?
guerra perdida pelo corpo.

O que é o desespero?
descrição da vida na língua da morte.

O que é a coincidência?
fruto na árvore do vento
caindo entre as mãos
sem se saber.

O que é o não sentido?
doença que mais se propaga.

O que é a memória?
casa habitada só
por coisas ausentes.

O que é a poesia?
navios que navegam, sem portos.

O que é a história?
um cego a tocar tambor.

O que é a sorte?
dado
na mão do tempo.

O que é a linha reta?
soma de linhas tortas
invisíveis.

O que é o tempo?
veste que usamos
sem poder tirar.

O que é a melancolia?
anoitecer no espaço do corpo.

O que é o sentido?
início do não sentido
e seu fim.

O que é a velhice?
planta que cresce em duas direções:
a aurora da infância
a noite da morte.

O que é viver?
caminhar sem pausa
rumo ao anoitecer.


trechos do poema "Guia para viajar pelas florestas do sentido", de Adonis

  Durme, Hermosa Donzella (Berceuse Sefardi, Rhodes) by Montserrat Figueras, Jordi Savall, Arianna Savall, Ferran Savall, Pedro Estevan on Grooveshark

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Do not go gentle into that good night

Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.


Dylan Thomas

Edvard Munch, Love and Pain, 1893-94

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Soneto da Rosa

Mais um ano na estrada percorrida
Vem, como astro matinal, que a adora
Molhar de puras lágrimas de aurora
A morna rosa escura e apetecida.

E da flagrante tepidez sonora
No recesso, como ávida ferida
Guardar o plasma múltiplo da vida
Que a faz materna e plácida, e agora

Rosa geral de sonho e plenitude
Transforma em novas rosas de beleza
Em novas rosas de carnal virtude.

Para que o sonho viva de certeza
Para que o tempo da paixão não mude
Para que se una o verbo à natureza.

Vinicius de Moraes


segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Memento Mori

Fotografia post-mortem da era vitoriana

A rapariga presente nesta fotografia está morta. Se olharmos mais atentamente, conseguimos distinguir uma base atrás dos seus pés, a partir daí, um suporte com grampos na cintura e no pescoço, sustentam o cadáver. A roupa estará desapertada na parte de trás. Os braços estão sustentados por arames a fim de se manterem no lugar - note-se a posição das mãos.As pupilas estão pintadas sobre as pálpebras fechadas.

As origens das fotografias memento mori  confundem-se com a origem da própria fotografia. No século XIX, os retratos post-mortem faziam parte do luto pela perda de um ente querido, especialmente de uma criança ou um bebé. Esta prática era transversal a toda a sociedade e com a invenção do daguerreótipo, em 1839, ter uma recordação fotográfica do falecido tornou-se mais rápido e barato do que mandar pintar um retrato.



Estas fotografias, mais do que confrontarem os vivos com a inevitabilidade da morte, constituíam uma recordação, já que, não raras as vezes, eram a única imagem que a família tinha daquele que partira desta vida. Geralmente, o morto era arranjado de maneira a parecer ainda vivo, ou num sono pacífico e sereno, livre de todo o  sofrimento terreno. Numa fase mais tardia, as fotografias post-mortem já incluíam o corpo no caixão, não havendo esforço para simular uma pose "viva".

Na sociedade actual, esta prática é considerada por muitos como grotesca, vulgar e sensacionalista, ou seja, tabu, em nítido contraste com a sensibilidade dos que, no passado, assim prestavam homenagem aos entes queridos. Esta mudança cultural revela-nos um maior desconforto social com a morte.

domingo, 23 de setembro de 2012

Femme et Chatte

Elle jouait avec sa chatte;
Et c'était merveille de voir
La main blanche et la blanche patte
S'ébattre dans l'ombre du soir.

Elle cachait - la scélérate!
- Sous ces mitaines de fil noir
Ses meurtriers ongles d'agate,
Coupants et clairs comme un rasoir.

L'autre aussi faisait la sucrée
Et rentrait sa griffe acérée,
Mais le diable n'y perdait rien...

Et dans le boudoir où, sonore,
Tintait son rire aérien,
Brillaient quatre points de phosphore.

Paul Verlaine

Jean Harlow


MULHER E GATA

Ela brincava com a gata
E era admirável ver as duas,
A branca mão e a branca pata,
Brincando à noite, na penumbra.

Ela escondia - a celerada!
- Sob as mitenes de fio escuro
As assassinas unhas de ágata,
Claras, cortantes, como um gume.

Fingia-se a outra adoçada
E retraía a garra afiada,
Mas o diabo nada perdia...

E no toucador retinia
O som de aéreas gargalhadas
E quatro pontos fosforesciam.

 Tradução: Fernando Pinto do Amaral
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...